Uma reportagem do Washington Post da última sexta-feira (24/04/2020) trazia a informação de que as mortes em decorrência do COVID-19 nos Estados Unidos – 51 mil – estavam chegando a um número bem próximo ao de norte-americanos mortos na Guerra do Vietnã.
Uma reportagem do Washington Post da última sexta-feira (24/04/2020) trazia a informação de que as mortes em decorrência do COVID-19 nos Estados Unidos – 51 mil – estavam chegando a um número bem próximo ao de norte-americanos mortos na Guerra do Vietnã. A comparação com situações de guerra durante a epidemia tem ido muito além desta fatídica contabilidade – governantes de todo o mundo vêm recorrendo ao léxico de guerra para tratar de estratégias e soluções de combate à pandemia.
“Estamos em guerra contra o vírus”; “vencemos a primeira batalha”; “um exército de enfermeiras está sendo recrutado”. Surgem hospitais de campanha, são acionados regimes de emergência, Estados de sítio, políticas de exceção. E o próprio Exército – ou outras forças armadas – são chamados como agentes de primeira instância; seja para os hospitais ou para a manutenção da ordem, com a restrição de circulação de pessoas. O enfrentamento da doença é tratado como uma guerra a ser vencida.
O mundo, no que depender dessa acepção, tornou-se um campo de batalha, onde se chega a suspeitar até mesmo que o vírus foi criado como “arma” biológica. Assim, estabeleceu-se como maior foco do combate um inimigo difuso – o coronavírus – e, eventualmente, outros inimigos, demarcados pela xenofobia ou pelo próprio estigma que a doença vem carregando em alguns países. Para esses, já que estamos em guerra, vale, inclusive, expulsar vizinhas ou vizinhos que sejam funcionários de saúde (e portanto mais sujeitos à contaminação) ou hostilizar o outro, ou seja, aqueles e aquelas que, não sendo nascidos numa determinada, cidade, estado ou país, estão prejudicando a batalha em nosso território.
De toda essa conjuntura depreende outra questão: ao longo da história ocidental, a guerra sempre foi um espaço quase exclusivo dos homens. Resultante da força máxima dos Estados ou de diferentes configurações de poder, alijava as mulheres dessa dinâmica de disputa. Por excelência, este é um campo narrativo no qual os homens transitam com naturalidade, enquanto às mulheres lhes resta papel secundários ou de obediência às leis maiores.
Mas por que guerra e mulheres normalmente não se conjugam na mesma sentença? A explicação antropológica simples é que não se pode passar uma borracha no papel do corpo feminino na reprodução da vida. Um trabalho delicado e demorado A morte aos milhares das mulheres compromete inevitavelmente o destino da espécie humana. No entanto, este poder de “dar a vida” sempre nos cobrou caro. Durante muitos séculos, a ausência da mulher na guerra foi escusa para afastá-la da participação na vida política da sociedade. Um dos argumentos utilizados no Brasil na discussão sobre a Carta Constitucional de 1891 foi que, se elas não pegam em armas, como poderiam ter o direito de votar e de serem votadas? Tal acepção é recorrente na História. Mesmo nas escritas do Humanismo Cívico, movimento italiano de defesa das cidades nos séculos XV e XVI, essa limitação estava presente.
Desta forma, Leolinda de Figueiredo Daltro, lutando pelo direito de votar e ser votada, criou em 1910, com o apoio da primeira-dama, Orsina da Fonseca, esposa do Marechal Hermes da Fonseca, presidente do Brasil, tanto o “Tiro de Guerra”, uma organização para treinar as mulheres com as armas, quanto fundou o “Partido Republicano Feminino”. Lutar e Votar, eram suas consignas.
Intitular a pandemia do COVID-19 como uma guerra está na demarcação patriarcal de que este espaço é “lugar de homem”, porque guerra nunca foi – e ainda não é – coisa de mulher. Não à toa, também no contexto da pandemia, a maioria dos gabinetes de decisão é composto por homens, salvo alguns casos pontuais, uma vez que são eles vistos como os naturais líderes de combates. Diante disso, organismos internacionais que defendem direitos das mulheres já começaram a exigir que as tomadas de decisão incluam também vozes femininas.
A dinâmica da guerra como uma má metáfora do que estamos vivendo com esta pandemia traz outra incorreção, para além da própria questão do estabelecimento de um inimigo, que recorre à falsa ideia de um nós x eles: a guerra pressupõe generais, comandantes e pessoas minimamente preparadas que seguem suas ordens. No contexto atual, entregar tudo a líderes de governos, preferindo este tratamento vertical, pode significar fortalecer ditadores, ditaduras ou mesmo governos pouco afeitos à democracia ou aos direitos humanos, que se aproveitam dessas conjunturas.
Em alguns casos, quando a liderança demonstra um comportamento democrático, entendimento da questão e cautela, com escuta aos cientistas, como aparentemente são os exemplos de Angela Merkel (Alemanha) e Jacinda Ardern (Nova Zelândia), esta verticalidade pode ser eficiente. Por outro lado, quando dirigentes se postam na frente da pandemia em poses beligerantes, como os casos dos presidentes dos Estados Unidos, Brasil e Hungria, o resultado pode ser opressor, violento e, por muitas vezes, desastroso. É só ver o conselho de Donald Trump apregoando as qualidades dos detergentes no combate à doença, e o volume de pessoas que ingeriu o produto de limpeza. Ou o caso análogo brasileiro da cloroquina. A guerra pode justificar muitos procedimentos e estratégias; a cura, a solução para uma pandemia, não.
Em um terceiro aspecto, comparar o covid-19, que nos mostrou claramente que nenhuma fronteira do mundo foi capaz de barrá-lo, a uma guerra, ignora o fator nacionalista que as essas batalhas costumam ter: briga-se por territórios, por bens, às vezes, por ideias e valores. Mas o esforço para manter a vida, deve ser sempre entendido no âmbito da saúde, um bem universal. Para a morte, a esfera deve ser outra. São desafios muito diferentes, que demandam políticas de natureza bastante distinta: pensar em saúde pública não é pensar em guerra. A primeira requer uma visão prioritária benevolente, solidária, humana, que a lógica de disputa da outra não contém.
Hoje no mundo, 70% dos que estão trabalhando arduamente nos hospitais – sejam enfermeiras, faxineiras, médicas ou assistentes sociais – são mulheres. Por estarem lá, no olho do furacão, são quem conhece de perto o problema e parte de sua solução. Esta não é uma guerra de homens, é uma pandemia. E a solução deve passar por todas e todos.
Débora Thomé e Hildete Pereira de Melo – cientista política e economista, autoras de “Mulheres e Poder”, FGV Editora
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